Quando Ogima entrou no pequeno anfiteatro para assistir à aula teórico-prática de Nefrologia já toda a gente estava à sua espera. O monitor, o doente e o resto da turma. Cabia a Ogima nesse dia “fazer a história clínica”. Como Ogima trazia na cabeça uns tópicos da semiologia do aparelho urinário, interrogou o doente, um rapaz de 12 anos, com perguntas à volta das doenças renais.
Quando Ogima terminou o interrogatório, Silvo Roncon, o assistente, perguntou a Ogima o que tinha acabado de acontecer. Ogima respondeu que tinha colhido a história clínica do doente. Então Silvo Roncon, num tom exaltado, disse que o que tinha acabado de assistir tinha sido a um interrogatório digno de um pide ou de um santo inquisidor.
O que tinha acontecido? Na realidade, Silvo Roncon tinha ido buscar aquele doente a uma enfermaria de Cardiologia. O doente sofria de uma doença cardíaca, uma cardiopatia congénita, e Ogima havia feito perguntas apenas acerca de doenças renais. Como o doente negava tudo para doenças renais, a culpa era do doente que não colaborava nas perguntas saca-rolhas.
No fim da aula Silvo Roncon prescreveu a penitência: Camilo Castelo Branco, Lev Nicoláievich Tolstói, Thomas Mann e João de Araújo Correia.
A ênfase que se tem colocado ultimamente nas narrativas em medicina parece ser um bom sinal no caminho para a humanização do modelo biomédico positivista que no século XX, com o dogma tecnológico, invadiu a medicina e transformou o homem numa máquina sem emoções, sem cultura, enfim, sem pessoa.
É um engano pensar que para entrar no universo da pessoa doente há uma receita pronta a usar sem ter em conta as singularidades de cada um e a contingência ligada ao contexto sócio-cultural. O médico precisa de ter formas adequadas de olhar, ouvir, sentir e interpretar um corpo carregado de signos que se exprimem de variadíssimas formas para além da linguagem comum, como a forma de olhar, a mímica e os gestos que acompanham a fala, o toque das mãos, e até os silêncios.
A inexorável simbiose do homem com a máquina e a droga do nosso tempo provocou inevitavelmente um distanciamento da relação entre o médico e a pessoa doente, a chamada desumanização da medicina. Nesta altura está-se a virar o feitiço contra o feiticeiro, ou seja, o médico está a ser tratado cada vez mais como objecto descartável, onde há doenças em vez de doentes. Por ironia, isto começou nos países de cultura anglo-saxónica cuja língua tem duas palavras para distinguir “disease” (referência objectiva da doença) de “illness” (estado subjectivo de uma pessoa se sentir doente).
A ciência do século XX ganhou um estatuto inaudito mercê do mito da base segura, alicerçada em factos sólidos firmemente estabelecidos na observação. As considerações que tenho vindo a tecer nas últimas reflexões sobre a intuição põe em questão essa perspectiva confortável. Está provado que as observações ditas objectivas são condicionadas pelas experiências anteriores, por preconceitos que estão omnipresentes, e pelas legítimas expectativas do observador. Os juízos sobre a verdade das asserções do observador dependem daquilo que já é conhecido ou pressuposto por ele, tornando assim os factos observáveis tão falíveis como os pressupostos que lhes subjazem. Sobretudo em ciência médica, a objectividade verificável da ciência positivista não é assim tão infalível como se supõe com tanta confiança.
Embora a doença seja um fenómeno biológico e material, a resposta humana a esse acontecimento decorre do acto de narrar a sua singularidade. A história clínica na forma de narrativa vivenciada não tem nada a ver com a sistematização que é utilizada para a apresentação de casos clínicos em sessões clínicas ou em publicações científicas. A experiência vivenciada do doente é vertida numa linguagem estereotipada, objectiva e científica, previamente filtrada pela interpretação subjectiva do médico em relatos na voz passiva.
Segundo Rita Charon, directora do Departamento de Humanidades da Universidade de Columbia, a narrativa do médico, embora aparentemente neutra e distanciada, está contaminada pelas suas motivações, medos e ambições. A medicina, não sendo apenas uma ciência mas também uma arte, não se reporta a apenas a factos explícitos mas também a um espaço de subentendidos captáveis intuitivamente. Com o medo das más notícias que o médico possa dar, o doente narra o seu drama duma forma instintiva muito particular. Assim, os médicos ganham muito em ler as grandes narrativas literárias, onde os escritores dissecam as fraquezas e as paixões da alma.
Creio no mundo como num malmequer, Porque o vejo. Mas não penso nele Porque pensar é não compreender... O Mundo não se fez para pensarmos nele (Pensar é estar doente dos olhos) Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo... Eu não tenho filosofia; tenho sentidos... Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, Mas porque a amo, e amo-a por isso Porque quem ama nunca sabe o que ama Nem sabe por que ama, nem o que é amar... Fernando Pessoa
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Qual o nome do quadro no início do texto?
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